É preciso sentir vergonha e não querer sair correndo
Morador de uma cidade pequena, o menino diz aos pais que deseja ser motorista de ônibus quando crescer.
Espantados, os pais questionam o motivo da escolha.
- Porque ele sempre pode sair da cidade, responde o menino.
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Quando um influenciador posta, em sua rede social, a imagem do feto abortado naturalmente pela mulher, não se trata mais de falta de noção ou desejo aumentado de publicidade. Isso existe, mas acontece quando uma pessoa famosa faz questão de nos contar que brigou com o marido, ou a especialista em finanças nos ensina a usar o papel higiênico (apenas tantos retângulos picotados por vez, ok? Em caso de diarreia, bem, ela não foi tão específica no post, então aguardarei novas instruções).
No entanto, o episódio sobre o aborto sofrido pela mulher do Thiago Nigro, a também influenciador Maíra Cardi, vai muito além da deselegância, do oportunismo ou da chatice: ao tornar público cada momento envolvendo a gestação, o exame de imagem que revelou a ausência de batimentos cardíacos do feto e, muito pior, a fotografia do próprio feto morto, o casal sugere ter atravessado uma linha bastante perigosa. Essa linha separa aquilo para o que estamos vivos e aquilo para o que estamos dessensibilizados.
Tomemos o exemplo da pandemia do coronavírus. As primeiras mortes anunciadas pela mídia (grande parte delas na Europa, e mais especialmente na Itália) causaram em muitos de nós sentimentos trágicos. Lembro-me de ver imagens pela tv, de pessoas moribundas em corredores de hospitais italianos, e me sentir consternado; de rezar por aquela gente e também pelos médicos e enfermeiros envolvidos no enfrentamento do vírus. Passados alguns meses, e depois de tantos números de mortos atualizados diariamente pelos governos e pela imprensa, o sentimento era outro: eu havia dessensibilizado para aquele drama.
Voltando ao caso das postagens sobre um aborto natural (porque existe o aborto provocado, como você sabe). Quando li a respeito da polêmica, a primeira coisa que me veio à mente foi: o que se passa dentro de alguém que julga aceitável o compartilhamento desse fato íntimo, dessa realidade delicada (um bebezinho em formação sem condições de desenvolvimento), com milhões de desconhecidos? O que é preciso acontecer dentro de uma pessoa para que ela perca todo o pudor?
Pudor, pudere, é uma palavra latina que significa envergonhar-se. E vergonha - soube pelo meu dicionário de etimologia - é “pôr-se para trás; de novo”. Ou seja, quando verdadeiramente envergonhados, nos voltamos para o fato gerador da vergonha. Recolhidos por esse sentimento, é como se ficássemos olhando de novo para o que passou (daí o “pôr-se para trás”). Não podemos avançar na conversação em torno da mesa: estamos vermelhos, ou simplesmente encabulados pela vergonha. A depender do tamanho do fato, ficamos ali mais um tempo, voltados de novo (e de novo) para o acontecimento pessoal. Alguém pode mudar de assunto?
Se você me entendeu bem, já sabe o que direi agora: talvez o casal de influenciadores tenha atravessado a linha da vergonha. Talvez eles não consigam mais, por uma série de razões que não cabem aqui, voltarem-se para os fatos de maior significado. Porque a vergonha, vista assim, não é o sentimento dos encabulados e tímidos, mas o atestado de uma saúde de alma sem a qual nos tornamos surdos intimamente. Algo acontece e, tragicamente, deixamos de ouvi-la.
A publicidade excessiva é o contrário da vergonha. Não importa o quanto o influenciador chore diante das câmeras, esse é o sinal evidente de que ele está olhando para fora quando fala - e ele consegue falar a respeito porque, no fim das contas, não está envergonhado.
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Quando um santo escreve sobre sua experiência mística, o faz por ordem superior. Santa Teresa escreveu As moradas do castelo interior porque era obediente ao bispo local. No que dependesse dela, jamais as teria escrito. Por que? Porque Santa Teresa tinha uma experiência genuína e consciente do amor de Deus, e isso provavelmente a envergonhava.
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Acesso as redes sociais todos os dias, em parte por motivos de trabalho. Entretanto, percebi que tenho seguido mais contas sobre viagens à Europa, paisagens belas pelos quatro cantos do mundo, casarões e palácios ingleses. De repente me vejo gastando meia hora em vídeos da Costa Amalfitana, ou de um passeio noturno pelas ruas de Gante, na Bélgica.
Então eu penso na história real do menino que queria ser motorista de ônibus.
Gante, Bélgica.