Viver é uma arte de esforço: devemos fazer o melhor com aquilo que temos. No entanto os anos vão passando e entendemos, e isso deve ser um fruto da maturidade, que é possível fazer muito com pouco. Vejam o caso da Carolina de Jesus: seu diário fora escrito em cadernos e folhas de papel encontrados no lixo. Semianalfabeta, catadora de papel e moradora da favela do Canindé, tornou-se uma das brasileiras mais lidas no mundo - Quarto do despejo foi traduzido e publicado em mais de quarenta países. Se compararmos sua escrita com a de Clarice Lispector, por exemplo, estaremos sendo injustos (as circunstâncias de uma e de outra eram bem diferentes). Ao mesmo tempo, não precisaríamos cair nas tentações do identitarismo (Carolina era mulher e negra etc) para reconhecer: ela fez, de fato, muito com pouco.
Penso nesses termos quando imagino o Juízo Final: o que fizemos com aquilo que nos foi dado. Com o talento recebido, com a reunião familiar, com a falta ou com a sobra de recursos financeiros, com o que ouvimos e aprendemos, com o que lemos, com o que descobrimos nas tardes de quinta-feira, com os encontros que tivemos, com as dores que sofremos, com os bons e com os maus momentos, com as piadas do Golias e com os filmes de Kurosawa, com os ensinamentos do pai e da mãe, com a fotografia da viagem para a praia, com a última conversa de sábado, com a primeira vez do sexo, com o dicionário do Aurélio, com o cachorro que escolhemos, com o dízimo que prometemos, com a gripe no meio das férias, com o diploma em Comércio Exterior, com o diário da adolescência, com o único exemplar do caderno de receitas da bisavó que já se foi. O próprio Deus saberá a resposta porque conhecerá toda a nossa vida.
Carolina de Jesus fez muito com pouco, muito com pouco, bastante com pouco.
Meu avô paterno criou e educou seis filhos com pouco. Também ele deve ter aprendido a arte do menor esforço e da máxima feita. Nem Carolina nem o avô Nelson são exemplos de produtividade, essa palavra industrial aplicada (infelizmente) às coisas humanas. Não. Meu querido avô soube viver tirando muito do pouco, e nunca o vi chateado por chegar em casa mais cedo.
Seriam necessárias mais nove vidas para Balzac escrever a Comédia Humana - se por acaso ele tivesse sido um homem produtivo. Graças a Deus ele precisou de apenas quarenta e nove anos para criar noventa e cinco romances. Isso é fazer muito do pouco, e como poucos!
E agora lembro dos monges trapistas de Campo do Tenente (PR), silenciosos, reunidos três vezes ao dia para rezar, e depois uma coisinha ali e outra acolá, trinta velas prontas numa tarde, oito pacotes de biscoitos para a lojinha, a Santa Missa para terminar o dia. Muito, muito, muito pouco.
Percebam agora: nosso mundo é um reino de desperdícios.
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Mas o desperdício depende do esquecimento. É assim que funciona: primeiro você se esquece, então você desperdiça.
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É uma das frases de Olavo de Carvalho de que mais gosto: a fé é o exercício da memória, lembrar-se do que é eterno.
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Durante a homilia o padre falou em bolinho de chuva. Imediatamente me lembrei da vó Elza, bisavó na verdade, e de todas as tardes em que me sentei à mesa, os pés balançando na cadeira, enquanto ela deslizava o indicador direito sobre a massa amarelada na colher, o bolinho tomando forma assim que caía sobre o óleo quente. Então ela passava as bolinhas quentes sobre o açúcar, depois sobre a canela, e os amontoava numa travessa grande. Eu lembro do cheiro da cozinha, da cor amarronzada dos bolinhos, do sorriso de minha avó amada.
Não fazíamos outra coisa a tarde inteira. Eram apenas os bolinhos. Mas eles eram muitos, eram tantos que agora já não cabem no mundo.
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A gente presta atenção numa coisa e acaba esquecendo da outra. É assim, faz parte do esforço da vida. Você pode querer prestar atenção em tudo, e ser um homem produtivo. Ou pode olhar meia dúzia de realidades, com meia dúzia de instrumentos, e fazer muito com pouco.
Capela do mosteiro trapista de Campo do Tenente, PR.
Nossa, que texto lindo, cheio daquelas verdades tão óbvias, mas que precisam ser dita diversas vezes para nos lembrarmos.
Adorei. Hoje escrevi uma pequena nota literária acerca de "Quarto de Despejo", entro aqui e me deparo com isso. Um texto que condensa exatamente o que percebi ao ler esse livro no início deste ano. Se tem algo que posso dizer que ler Carolina Maria me fez, foi pensar que eu não tenho desculpas o suficiente.